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PSYCHOMEDIA
TERAPIA NEL SETTING INDIVIDUALE
Psicoanalisi in America Latina


SÔBRE A FUNÇÃO TESTEMUNHO EM PSICANÁLISE

Marcio de Freitas Giovannetti

  1. Segundo G.Agamben, a palavra testemunho condensa dois signficados que em latim estavam separados: o que deriva da palavra testis- aquele que se coloca como um terceiro diante de um processo ou um litígio- e o que deriva da palavra superstes- aquele que atravessou e viveu uma experiência até o final e pode portanto dar testemunho disto. Mais de quarenta anos vividos na experiência de atender outras pessoas em meu consultório psicanalítico, permitem-me dar um testemunho, ainda que precário, daquela experiência que Freud arrolou dentre das “impossibilidades” humanas. Assim, este trabalho, mais clínico que teórico, tem como objetivo mostrar como fui me aproximando à ideia daquilo que chamo de função testemunho do analista, que adiciono à originária função interpretativa e à já clássica função continente e/ou de holding, conforme teorizadas por Bion e Winnicot. Para aquém da função interpretativa e para além da função continente, ela se apresenta sempre neste lugar intersticial, no lugar de fronteiras e também de sustentação entre aquelas duas. Menos como um “testis” mais como um “superstes”, o analista vai tentar dar voz e palavra àquilo que não se encontra na área do recalcado nem tampouco na área da falência, da ruptura do tecido psíquico mas mais propriamente na área do “não ter sido possível de ser legitimado enquanto experiência vivida”.

  2. No início dos anos noventa, já analista didata em minha Sociedade, fui procurado por uma mulher, mais de vinte anos mais velha que eu para iniciar sua análise didática. Seu forte sotaque, bem como sua postura e gestualidade, estavam em total sintonia com seu nome de origem alemã. Profissional de sucesso e bem situada na área da saúde mental, instigou-me o fato de querer iniciar a longa e dispendiosa formação em nossa Sociedade àquela altura de sua vida, até porque já havia feito uma muito boa formação psicanalítica em outra séria instituição de S.Paulo. Já tinha também muitos anos de análise pessoal. Mas não se sentia uma verdadeira psicanalista,dizia ela, achando que seu trabalho estava ainda muito sombreado por sua formação original, a de fisioterapeuta. Acreditava que a SBPSP poderia lhe legitimar, de alguma forma no lugar de psicanalista. Iniciados nossos trabalhos, ela me conta que, quando veio da Alemanha para a América do Sul, aos dezessete anos de idade, fora recebida pela Dra Adelheid Koch, analista alemã enviada ao Brasil pela IPA para fundar a nossa Sociedade. “Ela era amiga de minha família em Berlim, antes de se mudar para o Brasil”. Conversamos a respeito de um óbvio desejo de se re-situar num ambiente familiar, SBPSP-família de origem. Por outro lado, como desconsiderar este “gap” de cinquenta anos , perguntei eu? . “ Mas é que não fiquei no Brasil naquela época, apenas passei por aqui, tendo indo viver num outro país sul-americano, onde comecei a trabalhar, estudar e onde também casei-me com outro emigrante alemão. Mudei-me para o Brasil apenas vinte anos depois, e a Dra Koch, já estava praticamente aposentada”.

  3. Percebi que não se estendia muito a respeito daqueles tempos, suas associações girando mais em torno de sua vida atual, de seu trabalho, da perda de seu marido há alguns anos e de dores em seu corpo. Somente após alguns meses de análise é que veio a revelação: havia deixado a Alemanha no último barco que partira da Itália por ser de família judaica. “Mas eu nunca fui judia. Em minha casa tinha Natal, nunca houve festas judaicas e só fiquei sabendo disso quando tive que sair da escola que frequentava. Dois anos depois, fui mandada para cá. Ninguém mais de minha família sobreviveu”. Perguntei-lhe então sobre seu nome, tão alemão. “É o sobrenome de meu marido, o que uso desde que me casei”. Não usava o nome de sua família, não se sentia judia. Odiava o passaporte que lhe fora dado então, na saída da Alemanha, no qual, como a todas as mulheres judias fora-lhe acrescentado o prenome Sarah. E ela nunca se sentira Sarah. Posso dizer que este foi o tema central de sua análise que durou 6 anos. No final, ela estava começando a escrever suas memórias. Nunca as publicou. Sentindo-se legitimada enquanto psicanalista , “pertencendo” agora à Sociedade , a sobrevivente morreu poucos anos depois.

  4. Quase nada desta sua história ela havia contado em sua análise anterior. Fato que me surpreendeu de início mas que, por outro lado, me fazia sentir como primeira testemunha de uma experiência só agora, para além das dores pelo corpo e pela impossibilidade de sentir-se pertencendo a algum lugar, passível de ser legitimada. O impacto que vivi ao longo do processo de sua análise foi imenso. Também eu precisei de muitos anos, quase dez, para começar a poder teorizar um pouco a este respeito. O que começou a ocorrer quando há pouco mais de cinco anos dois fatos, pràticamente sincrônicos, me levaram a revisitar a experiência que havia tido com aquela mulher expatriada e de nomes adicionados e também escondidos. A leitura de “Homo Sacer” e “ O que resta de Auschwitz”, de Agamben, que partindo de Primo Levi, trabalha de forma aguda e precisa a problemática do testemunho, do qual o “musulman”, aquele que sobreviveu- mas apenas enquanto vida nua- ao campo de concentração é o paradigma; e a experiência com um jovem paciente, que trabalhando e vivendo fora do Brasil, levou-me a experimentar uma nova forma de atendimento: conversámavos por Skype. É claro que nestes dez anos, experiências com outros analisandos, a chegada da internet e a perplexidade com que todos nós vivemos os acontecimentos do 11 de setembro de 2001, também tiveram um papel mais do que significativo, nestas minhas considerações.

  5. “Eu tenho duas certidões de nascimento, a primeira só com o nome de minha mãe, a segunda, quando meu pai me reconheceu” disse-me aquele jovem de 25 anos em nosso primeiro encontro. Encontro este que havia sido pedido por sua mãe e que se dava fora de meu horário de trabalho, pois ela havia me ligado no final de uma sexta-feira, pedindo insistentemente que eu atendesse com urgência seu filho que, ficaria apenas mais dois dias em SP, voltando a seu trabalho na África na segunda feira. “Quando tinha 5 anos de idade minha mãe passou a viver com outra mulher que foi de algum modo um pai para mim”. “ Com meu pai mesmo, tive contatos esporádicos até meus dezessete anos, quando, fui passar uns meses com ele em sua casa nos Estados Unidos”. “ Há dois anos, quando terminei a universidade, fui passar um ano sabático, pegando ondas, na África do Sul. Pouco antes de voltar, recebi uma proposta irrecusável de trabalho, numa multinacional. Desde então, sou um dos responsáveis pelas vendas em 5 países da África, o que faz com esteja sempre me deslocando de um lugar a outro”. Ele não me parecia nem um pouco deprimido, ou à beira de um suicídio, conforme me dissera sua mãe. Tampouco queria ser medicado, apenas buscava urgentemente um interlocutor. No final de nosso encontro, disse-lhe que poderia indicar um colega na África do Sul ao que ele reagiu firmemente. “Não, eu falei que estou sempre me locomovendo e, além do mais, gostei de você. Por que não falamos por Skype?” Titubeei mas aceitei que poderíamos conversar mais algumas vezes. Quando depois de umas 4 ou 5 sessões , levantei a possibilidade de encerrarmos as conversas, ele me disse: “Não saia daí”. Percebi que com sua fala ele me dizia que agora havia um lugar fixo, do qual eu era o representante. Ou também, um lugar que propiciava a emergência de um ponto de vista, uma ancoragem de onde pudesse tantos movimentos e deslocamentos no tempo e no espaço.Durante mais de 3anos, nos encontrávamos uma ou duas vezes por semana, eu em meu consultório, ele, cada vez em um lugar, hotéis em geral. Lugares-ou não-lugares, conforme teorizou Marc Augé- foi a temática principal de nossas conversas durante algum tempo. Mais do que interpretações no sentido clássico do termo, minhas intervenções visavam com que ele discriminasse uma cidade da outra, um hotel de outro, os hotéis de casas. Num determinado momento ele me diz: “Nossa, será que é por isso, para tentar tomar posse, que eu guardo, coleciono todas as chaves dos hotéis e todos meus boarding passes?” Num outro , após me contar que na véspera havia perdido a hora e tivera que ir ao aeroporto de pijama, trocando-se no banheiro, disse-lhe eu que um filósofo atual escreveu que os aeroportos são o paradigma dos “não lugares”. Ao que ele exclama: “Nossa, será por isso que sempre fico deprimido quando passo pela alfândega? Como faço isso muitas vezes, eu acabo reconhecendo um funcionário e o cumprimento com alegria. Mas ele nem responde, na verdade nem se dá conta de que me viu”.

  6. O olhar que reconhece, por um lado, e, pelo outro, o olhar burocrático, daquele que está apenas cumprindo uma tarefa. Por aí, fui-me deparando com aquilo que chamo agora de “função testemunho do analista”. De alguma forma, tem a ver com o reconhecimento daquela pessoa como única, da sua singularidade, de seu nome próprio e de sua humanidade, por assim dizer. De sua existência única. Nem toda mulher judia é Sarah, como queria a mais radical das burocracias, a nazista. Nem todo aquele que passa por uma alfândega é apenas um corpo a ser revistado, como faz a mais banal das burocracias atuais, a dos aeroportos. Não basta para isso que a foto do passaporte ou as digitais neles marcadas confirmem a identidade de cada um. Essa a questão essencial para a qual me apontavam tanto esse jovem dos tempos internéticos quanto aquela idosa senhora dos tempos de Auschwitz.

  7. O analista propicia com sua escuta e sua fala um lugar histórico, um lugar de fato, onde se legitima a experiência vivida. Portanto, não se trata apenas de uma resposta interpretativa, como a que emerge da tópica freudiana, nem uma reconstrução, como emerge da sua teoria estrutural, como em “Construções em Análise”. O lugar que emerge daquilo que chamo função testemunho é mais próximo daquilo que Walter Benjamin, chama de o tempo do acontecimento mesmo, o tempo do “Kairós”. Aquilo que é sempre contemporâneo e por isso mesmo difícil de ser apreendido. Não se trata portanto de descobrir o latente, nem de reconstruir o tecido psíquico rompido, mas de reconhecer num novo registro as marcas de acontecimentos, ou de seus vestígios . Em uma palavra, tentar dar voz , lugar e tempo para aquilo que “resta”, no sentido que lhe dá Agamben em “O que resta de Auschwitz” , a sobra, o indizível de toda experiência vivida. Como Primo Levi, foi o porta voz do musulman, daquele que “olhou de frente a Górgona”, este sim a verdadeira testemunha.

  8. Era para este tipo de reconhecimento que apontava a busca de minha analisanda na Sociedade originada pela Dra. Koch. Era para este tipo de reconhecimento que apontava a busca de meu jovem paciente ao falar-me de duas certidões de nascimento. Qual delas é a legítima? Reconhecimento este que só pode se dar na travessia das fronteiras, neste lugar intersticial que não é nem o manifesto nem o latente, nem a dissolução do tecido psíquico pelo trauma. Embora necessite, de algum modo, também desses dois para se efetivar. Minha analisanda judia-alemã contou-me alegre e orgulhosamente que sua filha, artista que era, havia feito uma exposição na qual os objetos expostos eram enormes peças de tecidos, todos diferentes, unidos em patchwork, como que formando grandes e originais bandeiras. Magnífica alegoria da busca de uma identidade. É sempre a nova geração que, revisitando os conceitos clássicos, apreende de forma nova os seus “restos”, aquilo que eles traziam em potencialidade e não podia ainda ser lido.

  9. Ao convocar-me a atendê-lo por Skype, meu jovem paciente levou-me a ver que o lugar do analista e aquilo que torna a análise possível não é o seu consultório, nem seu divã, nem mesmo a corporeidade física de um e outro, nem todo a acervo de conhecimento teórico do analista. Mas sim a possibilidade de deslocar-se do lugar previamente definido e confortável de nossas teorias para poder fazer testemunho do acontecimento que é aquele encontro, a “talking cure”. Não como um terceiro, mas como um participante que é capaz do olhar e da escuta que reconhece e legitima cada experiência humana.Não deixa de ser surpreendente o fato de vermos com muita frequência análises bem sucedidas praticadas por colegas ainda inexperientes, ainda em formação, e análises muito mal sucedidas, praticadas por grandes mestres. Assim, não é a Interpretação dos Sonhos aquilo que origina e dá sequência à Psicanálise. Mas sim a escuta viva do apelo do filho ao pai com o qual Freud inicia seu clássico capítulo VII, daquele livro: “Pai, você não vê que eu estou queimando?” Este apelo ao despertar é a fala que resta daquilo que está aparentemente morto- a teoria reificada e fetichizada- ,apontando para o lugar fronteiriço: nem o sono, nem a vigília mas o ser capaz de flutuar entre um e outro, o lugar e o tempo mesmo do sonho, não de sua interpretação. Não tornar consciente o inconsciente, mas, legitimando a expansão das cadeias associativas, e com isso, favorecer que onde era ISTO- o resto- advenha um tanto mais de EU.

S. Paulo, agosto de 2013

 



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