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PSYCHOMEDIA
TERAPIA NEL SETTING INDIVIDUALE
Psicoanalisi in America Latina



Transformações em alucinose/transformações em O
Considerações na experiência clínica e descrições no cinema e na literatura

por Claudio Castelo Filho


No filme Ludwig de Luchino Visconti, há uma passagem muito interessante que tem a ver com os fenômenos que procurarei abordar nesse trabalho. Nessa passagem, Ludwig, o rei da Baviera, assiste a uma representação teatral, escondido no camarote real. Ele é a única pessoa na platéia, numa apresentação exclusiva para sua pessoa. Ao final da peça, o rei manda convidar o ator principal da companhia que havia interpretado um personagem heróico como Guilherme Tell, para um encontro privado. O ator vai encontrar-se com o rei na Gruta de Vênus, feérica construção artificial (obra do rei) inspirada nas óperas de Wagner (de quem Ludwig foi o grande mecenas) e na mitologia nórdica, que se encontra nos jardins do castelo de Lindenhof. No interior dessa, onde há um lago artificial com cisnes brancos, está a tocar música de Brahms, uma pequena orquestra. Para assombro do ator, vem pelo lago um barco com forma de cisne em cujo interior está o rei vestido com trajes escuros, envolto em peles, portando no seu chapéu preto, um cintilante e precioso broche de brilhantes. O ator começa a fazer inúmeras reverências à medida que o rei vai se aproximando. O rei, no entanto, para sua surpresa, olha-o com desdém e não lhe dirige a palavra. O barco encosta numa das margens do lago, o rei sai sem esboçar qualquer jesto de aproximação em relação ao ator, que vai ficando cada vez mais perplexo, achando que talvez estivesse sendo tratado daquela maneira por não ter sido suficientemente respeitoso e servil, passando a desdobrar-se em mais reverências. O rei todavia, parece reagir com ainda maior desdém. Joga uns pedaços de pão para os cisnes e retira-se sem dizer palavra, deixando claro no entanto, um profundo desgosto. O jovem ator fica atônito, sem nada compreender. Ao vê-lo perplexo, um dos valetes do rei aproxima-se do ator e lhe diz que se ele quisesse ter qualquer chance de estabelecer “algo” com o rei, que ele deveria reconsiderar sua atitude. O rei não estava interessado no homem, no ator. Ele queria encontrar-se com Guilherme Tell, Didier, Romeu, ou qualquer outro personagem heróico e romântico. Sugere-lhe que ao ir encontrar o rei que estava lhe esperando para um jantar íntimo, que ele se apresentasse como uma dessas figuras. Em seguida vemos no filme, o jantar com o rei, onde o ator, narra constantemente e encena para o rei embevecido, passagens heróicas de seu repertório. O rei lhe acena com uma fabulosa recompensa, um precioso relógio de ouro e brilhantes.
Há um novo plano e vemos um esgotado ator, no fim de suas forças, em meio a um lago da Suíça onde ele e o rei estão viajando (há algumas semanas através da Europa, visitando todos os sítios onde teriam vivido os personagens acima referidos). O rei insiste em que o ator continue sua interpretação “Seja Didier! Só mais uma vez”. Ao que o ator retruca que não poderia mais, que estava completamente exaurido, que enlouqueceria se assim continuasse. A relação dos dois, se é que se pode chamar essa situação de “relação” do vértice da verdade psíquica, termina aí.
O suntuosíssimo e belo filme de Luchino Visconti, com Helmut Berger, Romy Schneider e Silvana Mangano, narra a história de Ludwig II da Baviera, durante a Segunda metade do século XIX. Ludwig foi uma espécie de rei visionário, excêntrico e enlouquecido. Foi pouquíssimo afeito aos negócios de Estado e do Governo. Tinha horror às suas obrigações como soberano (e apego às vantagens em sê-lo). Queria ser o monarca de uma espécie de reino de contos de fadas, onde a arte, a sofisticação, a fantasia e a sensualidade predominariam sobre tudo mais.
Foi Ludwig que patrocinou de forma decisiva a carreira de Richard Wagner e financiou a construção do famoso teatro de Bayereuth.
Ludwig também se dedicou a construir castelos que dessem consistência ao seu estado alucinado de viver em um reino mitológico. Construiu os suntuosos palácios de Heremchiemsee e Lindenhof em estilo neobarroco ultra carregado e também o literalmente feérico e famoso castelo de Neuschwanstein (que inspirou posteriormente, nos filmes de Disney, a concepção dos castelo da “Bela Adormecida” e de “Cinderela”). O rei não queria saber da realidade e responsabilidade cotidiana de um monarca e da política da época. Queria viver no mundo que ele queria que existisse. Como ele era rei e rico, pôde dar muita substância a essa fantasia. O problema, é que a realidade acaba sempre se impondo e não há recursos humanos que sejam suficientes para fazer face, brigar com ela, mesmo que sejam recursos de reis (Maria Antonieta e suas “pastorais” são outro exemplo típico disso).
Durante o reinado de Ludwig eclodiu a guerra franco-prussiana, que acabou tendo como conseqüência a hegemonia da Prússia sobre os outros estados alemães, com a formação do Império Alemão.
Diante de todas as complicações do governo, o monarca se aparta cada vez mais da realidade e refugia-se no mundo que ele havia “construído”. Acaba deposto e internado como doente mental no pequeno castelo de Berg. Pouco tempo depois, ao sair para um passeio com seu médico, desaparece. É encontrado morto com o médico, nas águas do lago onde se situa o castelo, “afogado” em meio metro de água, numa morte que ficou misteriosa, pois jamais soube-se dizer se tratou-se de um crime político que aproveitou a situação de interdição judicial do rei ou se foi assassinato seguido de suicídio.
Pode-se dizer que este é um filme que em grande parte trata do tema da alucinose, das transformações em alucinose (Bion em Transformations e em Attention and Interpretation) e da loucura. Tema de interesse desse trabalho.
Comecei o trabalho narrando diretamente a situação do filme, pois penso que seria mais útil o leitor entrar diretamente em contato com o fenômeno e pudesse perceber pela experiência descrita esteticamente por Visconti (transformada, todavia, pela minha versão e leitura do filme) do que eu me referir à terminologia psicanalítica e procurar então descrever o que ele significa para mim. Não introduzindo de forma muito direta o que pretendo abordar, tenho a esperança de poder comprometer menos a minha comunicação com idéias que já possam existir sobre essa terminologia. Também evitando na medida do possível, definições e explicações que pudesse procurar dar (essas já existindo abundantemente na literatura psicanalítica), usando a descrição estética no lugar , para que possa eventualmente ficar mais claro de que fenômeno se trata, no meu modo de entendê-lo.
Outra passagem da mesma qualidade está no romance “Guerra e Paz” de Tolstoï. A Rússia está sendo invadida por Napoleão. O czar, pessoa de bela figura, mas de fraca condição mental, é estrategicamente retirado do front por seus generais e levado a Moscou sob o pretexto de que a sua presença na antiga capital do oriente, elevaria o moral da população e poderia angariar recursos para a campanha. O povo de Moscou fica em polvorosa ao receber o czar. Há um verdadeiro delírio da multidão diante do palácio. Disputam aos socos e tapas, migalhas caídas de um biscoito que o czar estava comendo quando este surge em um balcão para ver a multidão. Os nobres reunidos em um salão estão em estado de graça, praticamente em um transe por encontrarem o soberano. Quando o soberano se apresenta na sala, todos ficam transtornados de emoção, chegam aos prantos ao ver tão soberba e fabulosa figura. Prometem-lhe mundos e fundos. Centenas de servos para compor tropas no exército, milhares e milhares de rublos, uniformes, etc. Comprometem-se com tudo isso. O czar vai embora e no dia seguinte esses nobres senhores acordam se perguntando porque fizeram tudo aquilo e muito aflitos ao pensar no modo em que se comprometeram e com as dívidas que fizeram, com quem fará suas colheitas, etc., visto que, naquele momento posterior não conseguem mais entender como chegaram a fazer tudo o que fizeram e para quê, no dia anterior.
Essas, são preciosas descrições de estados alucinados que não correspondem ao que se costuma chamar de alucinações por psiquiatras. São descrições do que são, no meu entender, transformações em alucinose como propôs W. R. Bion em Transformations e Attention and Interpretation.

Proponho-me aqui a comentar um pouco de minha experiência clínica no que se refere à necessidade do analista trabalhar, como coloca Bion em suas Conferências de S.Paulo, a necessidade de se considerar não o que um analisando não estaria sendo capaz de ver quando estaria “alucinando”, mas aquilo que ele é capaz de ver e que o analista não estaria sendo capaz. Nas páginas 46 e 47 ele faz a seguinte narração: “Suponham que estamos observando uma partida de tênis, olhando-a sob uma escuridão que aumenta. Amortecemos a iluminação e a luz intelectuais, esquecendo a imaginação ou a fantasia ou quaisquer atividades conscientes: primeiro, perdemos de vista os jogadores e, aí, aumentamos gradualmente a escuridão até que somente a rede seja visível. Se conseguirmos fazer isso, ser-nos-á possível ver que a única coisa importante visível para nós é uma quantidade de buracos coletados juntos , numa rede. Do mesmo modo poderíamos ver uma soma de buracos tricotados juntos. Freud descreveu algo desse tipo, mas referiu que o paciente tinha uma fobia que o impossibilitava de usar meias. Sugiro que o paciente não tinha fobia de meias, mas que podia ver que aquilo que Freud pensava serem meias era um conjunto de buracos tricotados juntos. Se isto está certo, termos como “fobia”, em análise clássica, não fazem justiça à extrema capacidade de observação, natural em certos pacientes.”
Nesse trecho, além de alertar os analistas para sua soberba e desprezo por pacientes, Bion tira a psicanálise definitivamente do campo médico e da busca de cura. Mas o aspecto que realmente é importante aí, é a necessidade de o analista poder trabalhar e vivenciar o campo das transformações em alucinose. De viver aquilo que poderia se chamar alucinação por um psiquiatra, ou mais propriamente, de poder experimentar transformações em O, que seriam o equivalente das transformações em alucinose feitas pelos “ditos” pacientes. Só assim o analista poderia estar em com-um-nhão (minha tradução para at-one-ment que Bion usa em Attention and Interpretation) com a situação que se desenvolve na sala e com a “mente” do paciente como ele tão bem desenvolve no livro que acabei de citar no parêntese.
O proveito da parte do analisando, ocorreria quando este também, por sua vez, pudesse considerar aquilo que o analista conseguisse “ver” (correspondendo à uma experiência de alucinose, mas usada para fazer um pensamento/sonho, não uma alucinação) e que ele (analisando) não estivesse podendo ter acesso.
Usando como modelo - sem no entanto querer dar nenhuma conotação religiosa - o analista teria uma vivência equivalente à de um médium, que seria capaz de visualizar (principalmente visualizar) e eventualmente ouvir, presenças que estão na sala, mas que são ou estão, a não ser quando “visualizadas”, captadas, pelo analista, invisíveis, inodoras, intocáveis e inaudíveis, como espíritos a aguardar que alguém lhes dê voz (o analista usaria sua fala, para falar pelo “espírito”, ou melhor, o “espírito” usaria o analista para falar por ele), ou que chamasse a atenção de seu paciente para percebê-los. E aqui, seria de utilidade apenas quando o analisando também os “visse”, os vivenciasse (transformações em ser – “O”), não que ficassem apenas sabendo ou tendo ouvido falar a respeito deles, quando isso for possível. Pode-se dizer também, que o analista precisaria ver, o “espírito” que estaria “encostado” no paciente que este último não se dá conta (como penso que o paciente de Freud, referido por Bion, não sabia que via o que estava vendo, isto é, os buracos tricotados juntos). Lembro-me aqui de um documentário em vídeo que vi com a escritora/poeta Adélia Prado, onde ela comenta, que todo autor que é maior que a obra, a obra não vale grande coisa, é um embuste. Que Carlos Drummond de Andrade, a pessoa dele, era uma “titiquinha” de nada quando comparado à obra dele. Que a obra de Drummond era muito maior que ele. Que o poeta e o escritor, seria apenas o veículo da obra, o veículo de expressão de algo que ele capta e expressa - mas que está ali e prescinde do próprio poeta, que falaria a Verdade que captaria e intuiria, no que a meu ver corresponde ao que Bion chamou de transformações em O, ou quando ele diz que os pensamentos prescindem de pensador, as mentiras não.

Passo a narrar uma situação clínica, para situar como utilizo essas idéias na minha prática

Homem de negócios na indústria, com quatro sessões semanais, alguns meses em análise.

Entra, deita-se e diz que “hoje” era daqueles dias em que seria muito mais fácil se eu tivesse alguma coisa para lhe dizer, que eu começasse a falar algo, já que ele não tem nada que julgue ter vontade de falar. Diz que estão lhe passando pela cabeça uma série de eventos que acabaram de lhe suceder mas que não percebe interesse seu em relatar ou se ocupar de nenhum deles. No entanto, ao dizer que não se interessa por esses assuntos, vai enumerando e relatando quais seriam.
Fala, em tom blasé, que estava conversando com um colega de trabalho de onde é sócio. - Na verdade, alguém da família da ex-mulher é que havia comprado as ações dessa empresa e colocado em seu nome. Com a sua separação, ficou numa situação confusa. O cargo que ocupa na empresa deve-se não somente à sua reconhecida capacidade para a função, mas também de forma considerável às ações que “seriam” suas. Ele representava os seus interesses e os dos seus ex-familiares que por sua vez não trabalham na indústria. Como as ações não são mais “suas”, ele está num dilema: se poderá ou não recomprar essas ações, se terá capital para tanto, se poderá ou não continuar nessa organização - portanto, ele é, no momento, um sócio “espúrio” em situação sui-gêneris. – Esse colega teria lhe dito que o maior acionista da indústria, de quem o paciente jamais gostou e com que sempre se deu mal, estaria tentando se aproveitar de sua situação complicada com as ações da empresa para estrepá-lo.
Diz que em outros tempos teria ficando desesperado e que iria passar horas a xingar e a planejar vinganças (do modo como uma criança planeja vingança quando se vê frustrada por algum adulto), mas que, no entanto, ficou um tanto indiferente quanto a isso e nem quis saber qual era a sacanagem que o acionista majoritário teria tentado lhe fazer. Diz que também tinha ficado pensando no chamado que a “mulher” (que já é ex. há algum tempo) lhe fez, para ir na festa de aniversário de um dos três filhos que teve com essa, pois os filhos queriam muito que ele fosse. Diz que isso também não alterou muito o humor. Parecia estar relaxado e tranqüilo, não se alterando para as coisas. Estava pensando, ao sair do trabalho, que estava um belo fim de tarde, e em quem ele iria convidar para ir para um bar para tomar um chope, para ter uma conversa, para onde que poderia ir ao sair do trabalho, e que portanto não tinha muito o que dizer ali...[ele tendo falado tudo isso]. Digo-lhe que o que não parecia que ele ou eu poderíamos nos dar conta, é de que ele tinha escolhido ir até ali estar comigo. Que ele colocava todas essas opções do que fazer para não nos darmos conta que ele já tinha optado e escolhido o que era realmente de seu interesse, mas que ele próprio não era para se dar conta disso.
Ele se irrita um pouco e diz que eu vejo isso e ele fica intrigado porque não consegue ver isso. Que não era a primeira vez que eu lhe chamava a atenção para isso e que ele não conseguia ver. Para ele, ele estava ali porque tinha um compromisso de ir até ali naquele dia da semana, então vinha para o compromisso. Digo-lhe que não há nenhum compromisso, que ali ele vinha por livre escolha, a análise era dele e que aquele seu tom blasé, era para ele não se dar conta disso. Ele retruca que, eu, volta e meia, estava lhe chamando a atenção para esse fato de ele dar importância para o analista e para a análise....Digo-lhe que eu lhe chamava a atenção para isso não para dar importância para minha pessoa ou para a análise, mas para que ele pudesse perceber esse aspecto de si próprio que o trouxe até ali, que dá importância para a análise e tem uma ligação afetiva com o analista, mas que ele não reconhece como sendo próprio, ele mesmo. Silêncio. Suspira profundamente (aos meus ouvidos de modo angustiado). Indago-lhe se o seu suspiro poderia ser traduzido. Ele retruca de modo blasé e com desprezo para possíveis abordagens “psicanalíticas” para seu suspiro, que era apenas um suspiro de cansaço, pois tinha feito uma importante e complicada atividade no seu trabalho e estava suspirando apenas por esse motivo e não por qualquer outro. Digo-lhe que quem eu ouvia falar, era o grão-senhor que é como ele deveria ser, não aquele que quis vir até a análise, para quem ele não dá voz nem ouvidos. Quem estava falando era o tal acionista majoritário que não ouve ninguém e que trata todos os demais como algo chinfrim. Não era a mim ou à psicanálise que ele estava tratando desse modo, mas era a ele mesmo, o “ele” que quis vir a análise, que ele considera chinfrim e não quer ouvir, que ele estava tratando assim. Tinha o grão-senhor como ele deve ser, blasé e arrogante que falava assim. Penso e lhe digo que, dessa vez, ele não alimentou a polêmica em relação ao acionista majoritário de sua empresa, porque de alguma forma estava intuindo, mesmo sem se dar conta, que o acionista majoritário com quem ele de fato se encrenca, é um acionista majoritário ele (digo seu nome com o sobrenome do chefe) que despreza e destrata o (digo o seu nome com seu sobrenome real). Tem o que ele deveria ser, que despreza o que ele pensa que possa ser, que seja lá o que for, não seja o “grão-senhor”, blasé e arrogante e insensível, que ele deveria ser. Considero que a atitude que ele tem para consigo próprio é a mesma que tem para com o filho ilegítimo que ele sabe que tem, sabe que é seu, mas que reluta em conhecer, vê-lo e muito menos reconhecê-lo como sendo seu. É a atitude dele para com ele próprio que está expressa desse modo concreto, espalhada pela pessoas e pelos eventos que o circundam. Considero também, que essa “FILHO” foi uma espécie de revolta (um ato falho) dele para consigo próprio, para com o que “deve ser”, que atuou em um sentido de dizer: Eu vou nascer, eu vou ser eu mesmo, eu vou romper com esse circo de mentiras e com esse teatro em que estou metido - Quero viver, preciso viver a única vida que tenho para viver. O paciente diz que parece ser tudo isso mesmo, no entanto, não consegue saber o que seria ele mesmo...Também se espanta de eu estar lhe dizendo algo que parece ser assim mesmo como estou lhe dizendo, mas não sabe de onde eu tirei isso tudo e, que apesar de lhe parecer ser verdade o que estou lhe dizendo, que ele não consegue perceber mais do que essa sensação de que é verdade, mas não conhece nem percebe mais nada além disso (como o filho não conhecido nem reconhecido, mas que ele sabe que é dele mesmo - fez um teste de DNA privado, que lhe informou a probabilidade de 99,99% do menino ser seu mesmo.
Digo-lhe que o que eu fazia, era dar voz a algo dele próprio que estava ali na sala, presente e se manifestando, que eu percebia. Algo que ele não ouvia, não queria ouvir e nem reconhecer, que era o “ele mesmo” que passou uma rasteira naquele que “devia ser”, produzindo esse filho, e que esse “ele mesmo” o traz até ali para que eu lhe dê voz - ao “ele mesmo” que ele não quer ouvir - do mesmo modo em que ele se queixa de não ser ouvido pelo tal big boss que “encarnaria” o “como ele deveria ser”.

Considero aqui, que o analista funciona como um médium, dando fala aos aspectos cindidos e projetados do analisando, que por sua vez parecem tomar, por não poderem ter reconhecimento psíquico, nem manifestação psíquica, nesses eventos e pessoas que circundam o analisando, formando um verdadeiro “teatro” onde o paciente se relaciona com outras pessoas, que na verdade “encarnam” os seus aspectos negados, renegados e “splitados” ( identificações projetivas e transformações em alucinose).
A experiência que estou considerando aqui, é de praticamente “ver” os aspectos dissociados, a ALMA do paciente que ele teria perdido ou nunca encontrado, como um fantasma na sala, a pedir que uma mente pudesse percebê-los e lhes dar reconhecimento e voz. Não é algo a que se chegue por montagens intelectuais ou raciocínios, mas é algo que se experimenta, que se “vive”, em contato com a alucinose. Esta, como assinalou Bion, só se torna acessível com a disciplina de afastar memórias e desejos de compreensão, entendimento, cura, teorias de toda sorte, deixando os sentidos desobstruídos para poder captar o que se desenrola na experiência em curso na sala. Ficando na escuridão para poder perceber qualquer lampejo de luz que possa se apresentar.
Pensando no filme Pequeno Buda de Bertolucci, considero que poderia usar de modelo a situação expressa no filme onde três diferentes crianças seriam manifestações de reencarnação de um falecido Lama do Tibet. A alma do Lama tendo reencarnado em três diferentes pessoas, usando essa situação para exemplificar o que eu teria “visto”: o paciente descrever sua “alma” ou aspectos de si mesmo que estão “encarnados” nas situações, objetos e pessoas que o circundam, sem reconhecer que a maioria dos conflitos que está vivenciando são “personificações” e encenações de seus conflitos internos, dele com ele mesmo, que precisam ser personificados, encenados, atuados - por não encontrarem espaço íntimo para serem experimentados e vivenciados como experiência subjetiva.

Claudio Castelo Filho
Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de S. Paulo
Alameda dos Guainumbis, 920
04067-002, São Paulo, S.P.
telefone: (011) 533-5315
e-mail: HYPERLINK mailto:claudio.castelo@uol.com.br claudio.castelo@uol.com.br

Resumo

Nesse trabalho o autor se utiliza de trechos de dois filmes (Ludwig de Luchino Visconti e O Pequeno Buda de Bernardo Bertolucci) e do livro Guerra e Paz de Tolstoï para explicitar através de experiências estéticas, suas realizações das idéias de Bion sobre Transformações em Alucinose e Transformações em “O”. Compara a experiência de observação e captação dos fenômenos em curso na sala de análise àquela de um médium espírita, sem, no entanto, querer dar qualquer conotação religiosa metafísica, à essa experiência. Relata uma situação clínica onde procura explicitar o uso de suas realizações na prática do consultório.

Summary

The author uses exerts from two motion pictures (Ludwig by Luchino Visconti and The Little Buda by Bernardo Bertolucci) and from the book War and Peace by Tolstoï to explicit through esthetic experiences his realizations of Bion’s ideas about Transformations in Hallucinosis and Transformations in “O”. He compares the experience of observing and grasping the phenomena going on in the consulting room by the psychoanalyst to that of “medium’, without giving any metaphysical religious connotation to this experience. He reports a clinical situation where he tries to explicit the use of his realizations in his office practice.

Bibliografia

BION, Francesca, ed. (1992). Cogitations: Wilfred R. Bion. London: Karnac Books
2. BION, W.R. (1956). On Hallucination. Int. J. Psychoanal., 39: 341-9, 1958.
3. ________(1967). Estudos psicanalíticos revisados (Second Thoughts). Rio de Janeiro: Imago, 1988.
4._________(1967). Notes on memory and desire. In: LANGS, Robert, ed. Classics in psycho-analytic technique. New York: Jason Aronson, 1981. pp 259-60.
5.______(1975) Conferências Brasileiras 1 – São Paulo, 1973. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda.
6.______ (1977). Seven servants, four works by Wilfred R. Bion: Learning from experience; Elements of psychoanalysis; Transformations; Attention and interpretation. New York: Jason Aronson.

P.S.
Paciente de 40 e poucos, há muitos anos em análise, vai se dando conta que tem vivido uma espécie de situação com o seu marido que se configura mais como uma imitação do que seria um casamento do que sendo, de fato, um casamento. Percebe o marido um perfeito estranho, ele não é aquele que ela gostaria que fosse e que, de um certo modo sempre soube que não era (horas antes de se casar, há muitos anos, teve uma crise de angústia, pediu que o pai a tirasse daquela situação, o pai a apoiou completamente caso ela quisesse desistir, mas ela própria sente que se atropelou e investiu naquilo que devia ser, que as coisas seriam o que deveriam ser. O relacionamento tem sido muito sofrido. Ela descreve um contínuo desencontro entre si e o parceiro, pois nunca correspondem ao que um espera que o outro seja. Na sessão a que estou me referindo, a paciente está muito angustiada com as conseqüências de tudo isso, tem medo do que fazer, caso se separe. O marido tem negligenciado completamente a necessidade de honrar seus compromissos (inclusive o pagamento da escola dos filhos, contas no banco, etc.). Descreve a relação com o “marido” de um modo sempre cheio de sofrimentos, frustrações e acusações mútuas. O marido, segundo sua descrição, tem vivido como se fosse um príncipe, acreditando que o nome de sua família e as titulações acadêmicas que conseguiu o dispensariam de trabalhar. Que atualmente a sua fama trabalhará por ele. Que se dispôs a trabalhar muito e a ganhar bastante dinheiro, quando era para comprar carros de luxo, apartamentos suntuosos e viagens extravagantes. Considera, no entanto, um absurdo, ter de trabalhar para pagar contas de supermercado, escola, tratamentos médicos.... – Digo à paciente, que um dos fatores que a meu ver a deixam tão apegada a uma situação que ela descreve tão cheia de angústias e tormentos, é a satisfação erótica de natureza sado-masoquista que ela tiraria disso tudo. Satisfação que não conseguiria obter de outro modo. A paciente diz que a única vez que conseguiu afrontar o marido (arriscando romper o “compromisso” que teriam estabelecido) e exigir dele alguma coisa de modo mais direto, foi depois de um mês de lua de mel, em que ele achava que estava sendo “arrasador” na cama, mas na verdade ela não sentia nada, prazer nenhum. Disse-lhe que ela podia agüentar tudo, menos não ter prazer, que ela tinha que ter prazer e, ela então lhe disse com todas as letras que ele teria de mudar alguma coisa, pois daquele jeito, sem prazer, ela não suportaria. Parece que ele ficou muito constrangido, mas mudou seu modo de funcionar, visto que nesse campo, ele parece ter chegado onde ela queria. Até que ela começou a ficar muito angustiada ao se dar conta que isso de fato não lhe bastava. Todavia, tem medo de romper e ficar até sem isso (ao mesmo tempo, não tem mais conseguido manter a relação baseada apenas na satisfação erótica – fica angustiadíssima ao se sentir um objeto de uso sexual. Sente-se humilhada e revoltada toda vez que trepam. Até pouco tempo, nutria a fantasia de que se trepasse, todo o resto poderia ser relevado. Ficavam como se as brigas, desentendimentos e ofensas pudessem ser ignorados na medida que transassem – agora, não tem mais conseguido transar sem sentir que se faz uma violência). Digo-lhe que nessa situação toda, não há um homem e uma mulher. Que a relação, se é que se daria para chamar de relação, seria entre um pênis e uma vagina, se não de um pênis, com um clitóris, pau com vulva, pau com boca, boca com vulva, pau com ânus, ou melhor, pau com cu, pau com xoxota, não de homem com mulher, não de pessoas adultas. As pessoas, o homem e a mulher, seriam apenas penduricalhos, espécies de acessórios inoportunos ao pau e à xoxota, coisas que atrapalhariam o relacionamento satisfatório entre esses órgãos. Que ela e o “marido” se constituiriam assim: um pau, com um homem, um apêndice, o resto da pessoa, desprezível e que atrapalha. E ela, uma vulva, uma xoxota, uma boca, um ânus, com uma mulher acoplada, da qual ela não consegue se livrar e que vive atrapalhando os primeiros.
A paciente diz que por mais que isso lhe pareça louco, que ela sente que seria assim mesmo como eu estaria descrevendo.


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